Pouco depois do incêndio do Reichstag, ele conseguiu autorização para embarcar em um voo com Goebbels e Hitler. Conversou com o Ministro da Propaganda e reparou como Hitler estudava obsessivamente um mapa europeu. Ouvindo a conversa entre os dois, ficou claro para ele que Hitler não seria apenas um ventríloquo dos interesses dos grandes empresários alemães. O chanceler tinha um delírio pessoal para erguer, um projeto de grandezas e profundidades nunca imaginado: o Reich de mil anos. Doze anos depois, quando deu um tiro na cabeça, a paisagem era outra. Mas isso nós já sabemos e agora nos perguntamos como ninguém tentou evitá-lo antes. Pois é: o passado, que era o futuro naquele ano de 1933, naquele voo, passou pelos olhos do jovem jornalista de 27 anos, Gareth Jones. Mas quando ele alertou a todos, ninguém acreditou nele. O delírio parecia ser seu e não do senhor Hitler. Afinal, como duvidar de um homem que prometia salvar a economia da Alemanha?
No mesmo ano, ele foi para Moscou e conseguiu, fugindo da vigilância soviética, visitar os campos coletivizados na Ucrânia. De lá vinham os grãos que o governo trocava por libras e dólares para financiar a sua indústria. Stalin fazia uma propaganda imensa do sucesso da revolução e buscava aproximar-se do Ocidente, oferecendo oportunidades de negócios para a transformação de um país servil em moderna nação. Mas o que Gareth viu, longe da Moscou da propaganda, foi miséria, fome, mortes. A coletivização forçada promovida por Stalin transformou milhões de pessoas em escravas de um projeto de Revolução Industrial à curto prazo, com um custo maior do que a Inglaterra levou quase um século para promover. Mas Stalin tinha pressa. E, como o ditador mesmo costumava dizer: “uma morte é uma tragédia; um milhão de mortes, uma estatística.”
Mais uma vez, Gareth denunciou e buscou mostrar ao mundo que o que acontecia na URSS era terrível e não podia ser apoiado por ninguém. Mas, outra vez, quase ninguém se importou com o que ele disse. Pelo contrário, os EUA do senhor Roosevelt reconheceram diplomaticamente a URSS e mandaram para lá seus ávidos empreendedores, em busca de recuperarem o dinheiro perdido pela depressão do pós 1929. O mesmo ocorreu com a Alemanha. Quem se importava com aqueles discursos exagerados, com aquelas promessas macabras, com as ameaças aos judeus, ciganos, eslavos, homossexuais, pessoas com deficiência? A economia ia bem, a Alemanha seria grande outra vez. Hitler era só um falastrão. Se ele saísse do prumo, bastava tirá-lo do poder.
Gareth morreu em 1935, assassinado, provavelmente, por ordens de Moscou, durante uma reportagem na Mongólia. Morreu antes de a visão do presente que ele tentou difundir – como o homem que deixa a caverna e depois retorna porque acha que precisa compartilhar o que viu com os outros homens acorrentados pela rotina das sombras projetadas na parede – tornasse-se evidente para todos. Mas era tarde. Sempre é tarde.
O futuro, quando se torna presente, ilumina os espectros daqueles que se anteciparam e alertaram e que, quase sempre, foram desacreditados. É uma sina, a de estarmos mergulhados pelo presente que escolhemos ter e rejeitarmos visões perturbadoras como se fossem impossíveis. Até que se tornam a paisagem ao redor de todos nós.
Ainda hoje, o Holodomor, nome que expressa o Shoah ucraniano nos anos de 1932 e 1933, é pouco conhecido e ainda contestado por muitos. É que há muitos tempos presentes que são tão doces de se imaginar viver que não aceitamos a ideia de que eles nunca foram assim em tempo algum. E insistimos em citá-los, nostalgicamente, como se estivéssemos sob o efeito de uma droga alucinógena.
É como lembrar dos anos setenta no Brasil como um período de paz e prosperidade. É como, provavelmente, em algum momento do futuro, muitos dirão que vivemos, nesses dias de penumbra e tristeza, um tempo de ordem e de progresso. E, mais uma vez, serão as pessoas como Gareth que nos lembrarão o que o presente realmente foi, quando já for um passado distante e impossível de salvar.